Daniel Ustárroz – Professor da PUCRS | Doutor em Direito Civil (UFRGS) | Especialista em Resolução de Conflitos e Técnicas de Mediação (UCLM) | @danielustarroz
A atenção do direito às crianças é um fenômeno relativamente novo. Durante muitos séculos, prevalecia a ideia de que competia a um parente (em geral, o pai) cuidar dos interesses dos menores, decidindo as questões relevantes de sua vida.
Em tal ambiente, apenas em situações gravíssimas atuava o direito para desafiar a “dominação do pai” (expressão que retiro da clássica obra, “A Família em Desordem”, de Elisabeth Roudinesco).
Foi no século XIX que os países e os sistemas jurídicos começaram a se debruçar com maior atenção para os deveres dos pais e da sociedade civil em relação aos menores. A progressiva abertura de escolas para todos, a obrigatoriedade de matrícula, assim como a fixação de idade mínima para o ingresso no mercado de trabalho, são dois exemplos importantes de uma nova forma de pensar, mais protetiva aos jovens.
No plano internacional, a Liga das Nações colaborou para a “Declaração dos Direitos das Crianças, de Genebra (1924). Embora, naquele momento histórico, sem força cogente aos Estados Nacionais, esse sucinto documento proclamou formalmente direitos das crianças, reconhecendo que elas se encontram em posição de vulnerabilidade.
Os seus cinco artigos serviram de base para que, décadas mais tarde, fossem consagrados os Princípios da Convenção dos Direitos da Criança de 1959 e a Convenção Internacional dos Direitos das Crianças (1989), ratificada por 196 países.
Neste artigo, gostaria de destacar três recentes acórdãos do STJ, proferidos pelas suas 3 Seções (Direito Público, Direito Privado e Direito Criminal), a fim de ilustrar a relevância da pauta da proteção da infância no “Tribunal da Cidadania”.
Começo com a Segunda Seção, que aprecia casos de Direito Privado. Uma situação sempre dramática ocorre quando o pai registral impugna a paternidade, postulando a sua “correção”, em geral anos após ter declarado o vínculo parental perante o Registro Público e ter formado relação afetiva com o menor.
Valorizando a paternidade socioafetiva, as Turmas consideram que “para ser possível a anulação do registro de nascimento, é imprescindível a presença de dois requisitos, a saber: (i) prova robusta no sentido de que o pai foi de fato induzido a erro, ou ainda, que tenha sido coagido a tanto e (ii) inexistência de relação socioafetiva entre pai e filho. Assim, a divergência entre a paternidade biológica e a declarada no registro de nascimento não é apta, por si só, para anular o registro”. (REsp 1814330/SP, 3. T., Rel. Min. Nancy Andrighi. DJe 28.09.2021).
Desta forma, se formado vínculo socioafetivo entre a criança e o pai registral, “permitir a desconstituição do reconhecimento de paternidade amparado em relação de afeto teria o condão de extirpar da criança preponderante fator de construção de sua identidade e de definição de sua personalidade”.
Da Terceira Seção, que aprecia direito penal, registro caso delicado envolvendo pedofilia. No Informativo de Jurisprudência n. 729, consta acórdão da 6. Turma, de 15.03.2022, Relatoria da Ministra Laurita Vaz, no qual se discutiu a interpretação da expressão “cena de sexo explícito ou pornográfica”, para efeito de tipificação penal do art. 241-E, do Estatuto da Criança e do Adolescente.
No caso, embora não tenham sido expostos os órgãos genitais das vítimas em fotos, a relatora considerou suficiente a contextualização obscena, poses sensuais e a finalidade sexual das imagens. As fotos armazenadas das adolescentes eram com lingerie e biquíni.
Considerou a Ministra que o art. 241-E, ao explicitar o sentido da expressão “cena de sexo explícito ou pornográfica” não restringe tal conceito apenas às imagens em que a genitália de crianças e adolescentes esteja desnuda. E ponderou que os juízes deveriam aferir a evidência de exploração sexual, obscenidade ou pornografia.
Por fim, da Primeira Seção, que aprecia casos de direito público, destaco julgamento que concedeu a “pensão especial por morte de ex-combatente” (Lei 8.059/90) à neta inválida que vivia sob a dependência econômica do avô. No caso, o Ministro Sérgio Kukina destacou que o art. 33, § 3°, do Estatuto da Criança e do Adolescente, estipula que o vínculo da guarda confere à criança ou adolescente a condição de dependente para todos os efeitos, inclusive previdenciário. Em atenção aos princípios da Prioridade Absoluta (CF, art. 227, caput e § 3°, II) e à Doutrina da Proteção Integral do menor e do adolescente (art. 1°, do ECA).
Com base nessa fundamentação, concluiu que a despeito da Lei 8.059/90, que regula o benefício, não prever explicitamente a hipótese de neto postular a pensão pelo falecimento do avô, no caso concreto, “uma vez que a recorrida é acometida de severa incapacidade, faz-se de rigor a restauração da pensão especial deixada pela morte de seu então guardião e avô, ex-combatente, porquanto mantida a condição da dependência econômica”. (AgInt no REsp 1883098/RN, 1. T. DJe 08.11.2021)
Casos com os acima selecionados demonstram a atualidade do tema da proteção da infância, assunto essencial para a defesa e promoção dos direitos humanos no Brasil.
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