Uma fonte extremamente rica do dever de indenizar está prevista no Código Civil: o art. 187, CC: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. Este artigo densifica a teoria do abuso do direito em nosso sistema, oferecendo consistência e fluidez ao discurso jurídico.
Vale lembrar que o Código de 1916 era praticamente omisso a este respeito, uma vez que a construção legal do abuso do direito se dava através de interpretação a contrario senso do art. 160: não era ilícito o exercício regular de um direito, logo a atuação irregular daria margem à ilicitude. Por conseguinte, embora existissem acórdãos adotando esta teoria francesa, a sua recepção no direito nacional sempre foi discutida pela doutrina.
A semente da teoria do abuso do direito remonta ao pensamento de Louis Josserand, no início do século passado. A rememoração de suas lições é extremamente valiosa para preencher o conteúdo normativo do art. 187 e guiar o intérprete na sua concreção.
O Doyen da Faculdade de Lyon e Conselheiro da Corte de Cassação francesa inaugura a sua obra fundamental sobre o tema valendo-se de uma frase emblemática de Voltaire: “un droit porté trop loin devient une injustice”. Ou seja, o exercício desmedido de um direito, sem limitação, conduziria à injustiça por desconsiderar interesses legítimos alheios. O brocardo latino “summum ius summa iniuria” também é lembrado em suas páginas iniciais.
Nesse breve estudo, selecionei três parágrafos retirados de sua obra-prima, que simbolizam a sua visão relacional do fenômeno jurídico e a necessidade, sentida em sua época, de revitalizar a ciência do direito, a começar pela necessidade de conectar a pessoa ao mundo em que vive e atua.
Afirmou Josserand: “não é no espaço interplanetário que o homem faz valer e realiza os seus direitos, mas dentro de um meio social, do qual ele constitui uma das suas incontáveis células, a mais frágil e a mais ínfima; uma engrenagem subalterna encadenada dentro de um mecanismo complexo e formidável, ele deve se comportar em função do meio do qual ele saiu, cada vez que ele exerce um direito, ainda que aparentemente o mais individual e egoísta. É uma prerrogativa social que ele deve utilizar, em conformidade com o espirito da instituição, civilizadamente”.
Outrossim, a cega obediência da literalidade da lei é enfocada mais como uma forma de perturbar a realização do direito do que propriamente um meio de encontrar a justiça. Os direitos prima facie reconhecidos no ordenamento precisam ser temperados, quando de sua aplicação concreta, para o respeito e a consideração dos direitos alheios. Agregou Josserand: “a odiosa máxima ´dura lex, sed lex` que não parece ser verdadeiramente romana é, em todo caso, completamente falsa enquanto expressão do direito romano da boa época; ela deve ceder posto à seu corretivo e a seu antagonista ´summun jus summa injuria` e o direito pretoriano, no seu admirável e harmonioso desenvolvimento, constitui a mais brilhante ilustração da marcha triunfal da teoria do abuso”.
É interessante, por fim, registrar o seu ceticismo quanto à forma de pensar dos “Direitos Humanos”, enquanto expressão natural, inalienável e sagrada das pessoas, por apartá-las de seus semelhantes e ensejar uma visão que, em última análise, conduziria ao absolutismo do “direito subjetivo”. Escreveu o autor sobre os ´Direitos do Homem`, “da famosa Declaração de 1789, ´direitos naturais, inalienáveis e sagrados´, direitos naturais e imprescritíveis`, ´direitos invioláveis`, que se impõem aos poderes públicos, sem exceptuar o Legislativo e o constituinte : «Uma concepção assim, que se explica historicamente pelo jogo das relações sociais, devia conduzir ao absolutismo dos direitos subjetivos; por ela, o indivíduo se torna um soberano, armado de prerrogativas intangíveis que ele pode usar discricionariamente: projetando ´ficticiamente o indivíduo fora do meio social`, a escola do direito natural estava fatalmente simpática a lhe permitir de exercer os seus direitos em qualquer direção, mesmo associal ou anti-social”.
Louis Josserand imortalizou na história do direito dois precedentes franceses da virada do século XIX : o caso da falsa chaminé, julgado pela Corte de Colmar, em 2 de maio de 1855; e o caso Clément-Bayard, apreciado pela Corte de Cassação, em 03.08.1915. Na sua visão, a edificação de uma falsa chaminé destinada a prejudicar o vizinho constituiu um exemplo célebre da constatação do abuso de direito, tal qual a instalação de espigões de ferro, com altura de 16 metros, com o escopo de constranger a empresa de dirigíveis a adquirir o terreno lindeiro. Em ambas as hipóteses, os Tribunais não poderiam concordar com a atuação dos proprietários, embora as obras tivessem sido realizadas no próprio terreno e em conformidade com as licenças, uma vez que o seu agir era animado por uma perspectiva anti-social.
Com os olhos voltados à realidade atual, a jurisprudência vem aplicando a norma brasileira em litígios envolvendo a liberdade de imprensa, postagens em redes sociais, abordagens de civis por agentes públicos e por seguranças privados, denúncias de crimes, fiscalizações de órgãos administrativos, abuso direito de recorrer, concessão de crédito para pessoas endividadas, dentre outras situações.
Como se observa, embora inicialmente a atuação da jurisprudência, na concreção do art. 187, tenha sido tímida, atualmente, com o trabalho conjunto da doutrina, que levanta hipóteses e ampara o raciocínio dos juízes, a nova fonte do dever de indenizar produz reflexos práticos interessantes.
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