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A recepção do bullying no Direito Civil

data

17 de junho de 2022

categoria

Direito,

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Daniel Ustárroz – Professor da PUCRS | Doutor em Direito Civil (UFRGS) | Especialista em Resolução de Conflitos e Técnicas de Mediação (UCLM) | @danielustarroz

No Brasil, o uso do termo “bullying” pelas pessoas é relativamente recente, embora possivelmente o fenômeno ocorresse há muitas décadas. Aprendi com Miguel Reale (Lições Preliminares de Direito) que o Direito é um fenômeno cultural e “a cultura existe exatamente porque o homem, em busca da realização de fins que lhe são próprios, altera aquilo que lhe é ´dado`, alterando-se a si próprio”.

 

Por ser cultural, o direito precisa do auxílio das demais ciências (das demais pessoas). A formação interdisciplinar é essencial para melhor compreendermos os delicados e complexos fenômenos sociais, como o bullying, cuja prevenção demanda trabalho conjunto de várias áreas do conhecimento.

 

O direito em geral responde a demandas da sociedade. Talvez em décadas passadas, não houvesse um interesse social relevante quanto ao bullying, seja porque ele ocorria em menor escala (mera hipótese), seja porque as pessoas não tivessem interesse em preveni-lo ou coibi-lo (outra hipótese a ser investigada). 

 

O fato é que, além do termo “bullying” ser desconhecido para as gerações passadas, ele de forma extremamente rara ingressava no terreno do direito (afinal, cuidar dos filhos era tarefa prioritária dos pais e uma interferência externa ao exercício do “pátrio poder” era indesejada).

 

Os tempos mudaram e as necessidades sociais também. Especialmente a partir do final do século XX, o direito compreende que a criança é um ser em desenvolvimento e que merece prioritária proteção da sociedade. O direito inclusive recepcionou legislação protetiva aos menores, como a Convenção Internacional dos Direitos das Crianças (1989), no plano internacional (ratificada por 196 países), e o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), entre nós.

 

Com esse pano de fundo social e jurídico menos hostil às crianças, foi sancionada, em 2015, a Lei Federal n. 13.185, que instituiu o “Programa de Combate à Intimidação Sistemática”. Em geral, qualquer conceito jurídico oferecido pela legislação corre o sério de ser incompleto, impreciso e de se tornar obsoleto. Contudo, no caso do bullying, as balizas oferecidas para a sua caracterização foram bastante úteis ao direito civil.

 

Segundo o art. 1º, §1º, “considera-se intimidação sistemática (bullying) todo ato de violência física ou psicológica, intencional e repetitivo que ocorre sem motivação evidente, praticado por indivíduo ou grupo, contra uma ou mais pessoas, com o objetivo de intimidá-la ou agredi-la, causando dor e angústia à vítima, em uma relação de desequilíbrio de poder entre as partes envolvidas”.

 

Ainda, o art. 2º caracteriza a intimidação sistemática “quando há violência física ou psicológica em atos de intimidação, humilhação ou discriminação e, ainda: I – ataques físicos; II – insultos pessoais; III – comentários sistemáticos e apelidos pejorativos; IV – ameaças por quaisquer meios; V – grafites depreciativos; VI – expressões preconceituosas; VII – isolamento social consciente e premeditado; VIII – pilhérias”. O mesmo artigo dispõe acerca do “cyberbullying”, “quando se usarem os instrumentos que lhe são próprios para depreciar, incitar a violência, adulterar fotos e dados pessoais com o intuito de criar meios de constrangimento psicossocial”.

 

A intimidação sistemática pode ser praticada por variadas formas, daí a previsão do art. 3º: “I – verbal: insultar, xingar e apelidar pejorativamente; II – moral: difamar, caluniar, disseminar rumores; III – sexual: assediar, induzir e/ou abusar; IV – social: ignorar, isolar e excluir; V – psicológica: perseguir, amedrontar, aterrorizar, intimidar, dominar, manipular, chantagear e infernizar; VI – físico: socar, chutar, bater; VII – material: furtar, roubar, destruir pertences de outrem; VIII – virtual: depreciar, enviar mensagens intrusivas da intimidade, enviar ou adulterar fotos e dados pessoais que resultem em sofrimento ou com o intuito de criar meios de constrangimento psicológico e social”.

 

Considero o “arcabouço” legal acima (combinado com os diplomas protetivos que temos no Brasil para proteger crianças) suficiente para resolver as principais questões relacionadas com o bullying, no âmbito do direito civil (proteção de crianças, responsabilidade civil dos menores, dos pais, das escolas e do Estado, guarda, etc.).

 

Contudo, o diagnóstico do bullying no ambiente escolar é sempre difícil, pois existem dois grandes riscos que devem ser sempre ponderados: o primeiro derivado da omissão e o segundo do diagnóstico equivocado. A Associação espanhola “No al acoso escolar” (NACE), identificou “pistas” para a sua detecção.  E batizou a “regra dos 4 C´s”: “Cambios” (mudanças comportamentais: sono, notas, alimentação, desinteresse por hobbies, vestuário, etc.); “Campanas” (“gazear” aulas, evitar o colégio, o absenteísmo, “síndrome do domingo de tarde”, somatização das angústias na véspera de retornar a escola, etc.); “Corpo” (autolesões, perda de alegria e sorrisos, mirada ao chão, etc); e “Costumes” (chegar por último na classe e querer ser o primeiro a sair, evitar estar em grupo, não ir ao quadro, estar próximo ao professor, etc.).

 

No próximo artigo, apresentarei alguns casos interessantes julgados pelos Tribunais a respeito do tema.

SOBRE O AUTOR

Doutor em Direito Civil (UFRGS). Professor da Escola de Direito (PUCRS). Instagram: @danielustarroz. Email: ustarroz@terra.com.br

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