Recentemente, publiquei aqui no Espaço Vital uma coluna sobre a primeira decisão relevante do STJ a respeito de conflito entre a plataforma Airbnb e um condomínio. Creio que a leitura desse texto é importante para a contextualização do caso, ocorrido na Cidade de Porto Alegre/RS. Na semana passada, o acórdão foi publicado (27.05.2021). No presente artigo, gostaria de destacar trechos de votos proferidos pelos Ministros da Quarta Turma, os quais evidenciam algumas das preocupações da Corte, bem como critérios jurídicos sugeridos para casos análogos.
O primeiro voto proferido foi o do Relator, Min. Luis Felipe Salomão. Em apertada síntese, o seu voto afastou a caracterização de “contrato de hospedagem”, pois este compreenderia necessariamente a prestação de “múltiplos serviços”, como portaria, segurança, limpeza e arrumação dos cômodos. Destacou efeitos econômicos positivos, assinalou que o “airbnb” é uma realidade na maioria das cidades do mundo, sublinhou a ausência de regramento legal específico, valorizou o direito de propriedade de cada condômino e utilizou como parâmetro de analogia o contrato de locação por temporada.
Destaco os seguintes trechos: “É bem de ver, portanto, que o contrato de hospedagem, a teor da previsão legal e do entendimento jurisprudencial sobre o tema, compreende a prestação de múltiplos serviços, sendo essa a tônica do contrato. É contrato em que a prestação de serviços constitui elemento inerente à sua configuração, a exemplo dos serviços de portaria, segurança, limpeza, arrumação dos cômodos, entre outros, excluindo, ainda, qualquer utilização para fins residenciais. Nesse sentido, penso não ser possível categorizar a atividade realizada pelos proprietários recorrentes como comercial, igualando-a àquelas realizadas por estabelecimentos dotados da estrutura para o fornecimento dos serviços inerentes à hospedagem, nos estritos limites da lei”.
Sobre os efeitos econômicos positivos: “Outrossim, especificamente sobre os efeitos da atividade econômica relacionada exclusivamente à plataforma Airbnb, em artigo publicado no Valor Econômico, a informação é que tal modalidade negocial acrescentou R$ 2,5 bilhões ao PIB brasileiro no ano de 2016, segundo a Fipe. O estudo ainda aponta que o incremento da riqueza proporcionado pelo Airbnb à economia brasileira teria sido de 0,04% ante o PIB, correspondendo a R$ 6,266 trilhões (…)”.
Quanto ao enquadramento jurídico do fenômeno: “Penso que, na situação apresentada, em que os recorrentes se valem de cômodos de um mesmo imóvel e também de um segundo imóvel em sua totalidade, com o nítido propósito de destinação residencial a terceiros, mediante contraprestação pecuniária, ainda que por prazos de curta duração, as relações negociais mais se aproximam do contrato de locação por temporada.”
Em sentido distinto, o Min. Raul Araújo considerou presente um “contrato de hospedagem atípico”. A locação não teria finalidade residencial, porém comercial. O voto assinalou o risco à segurança dos demais moradores, com a frequente introdução de pessoas estranhas à vida condominial. Nesse contexto, a proibição prevista na Convenção Condominial para o uso comercial dos bens não violaria o direito de propriedade dos condôminos.
Destaco: “a hipótese dos autos se equipara à nova modalidade de hospedagem, surgida nos dias atuais, marcados pelos influxos da avançada tecnologia e pelas facilidades de comunicação e acesso proporcionadas pela rede mundial da internet, e que se vem tornando bastante popular, de um lado, como forma de incremento ou complementação de renda de senhorios, e, de outro lado, de obtenção, por viajantes e outros interessados, de acolhida e abrigo de reduzido custo (…)”.
A seguir, afastou o enquadramento de locação por temporada: “diferentemente do caso sob exame, a locação por temporada não prevê aluguel informal e fracionado, de quartos existentes num imóvel, para hospedagem de distintas pessoas sem vínculo entre si, mas sim a locação plena e formalizada de imóvel adequado a servir de residência temporária para determinado locatário e, por óbvio, seus familiares ou amigos, por prazo não superior a noventa dias”.
Por fim, enfatizou a previsão expressa da Convenção, no caso, proibindo a locação comercial: “portanto, existindo na Convenção de Condomínio regra impondo destinação residencial, mostra-se indevido o uso das unidades particulares que, por sua natureza, implique o desvirtuamento daquela finalidade residencial (CC/2002, arts. 1.332, III, e 1.336, IV). Não obstante isso, ressalva-se a possibilidade de que os próprios condôminos de um condomínio edilício residencial deliberem em assembleia, por maioria qualificada (de dois terços das frações ideais), permitir a utilização das unidades condominiais para fins de hospedagem, por intermédio de plataformas digitais ou outra modalidade de oferta, ampliando seu uso para além do estritamente residencial e, posteriormente, incorporem essa modificação à Convenção do Condomínio”.
A Min. Maria Isabel Gallotti acompanhou a divergência, ponderando: “penso que, em se tratando de casas, o proprietário terá liberdade bem mais ampla para destinar o imóvel com propósitos apenas residenciais ou comerciais, terá flexibilidade em relação à entrada e saída dos moradores e ao emprego do imóvel, do que acontece em condomínio, no qual os condôminos são vinculados aos termos da convenção e há questões como a segurança e também as atividades dos servidores do condomínio, que podem ser impactados com o modelo de negócios do Airbnb”.
Por fim, o voto do Min. Antonio Carlos Ferreira, ao acompanhar a maioria, enfatizou que o caso não se presta para a formação de um precedente específico: “se tratássemos aqui de uma locação para temporada pura, sem a oferta de qualquer serviço adicional, ainda que avençada por meio de um aplicativo, possivelmente não teria a mesma sorte este recurso, ao menos sob a minha compreensão, ressalvada a hipótese de expressa vedação na convenção condominial, o que não se noticia neste caso. É por esse motivo que entendo não ser este o processo mais adequado para que dele se possa extrair uma abrangência maior e criar precedente específico sobre a questão envolvendo os aplicativos pelos quais os usuários oferecem seus imóveis para uso temporário (locação para temporada)”. Chamou ainda atenção para o importante papel das Convenções: “Por isso, creio que cabe à convenção de condomínio – estatuto que traduz a vontade da maioria absoluta dos coproprietários, e cujos termos aplicam-se a todos os moradores, indistintamente – disciplinar o uso das unidades condominiais, sem que daí resulte indevida restrição ao direito de propriedade”.
Como se observa, o tema é complexo, pois envolve tantas pessoas com interesses distintos (usuários, os vizinhos, os proprietários, os condomínios, a plataforma, enfim muitíssimos atores sociais). Certamente, será alvo de novas deliberações pelo Superior Tribunal de Justiça. Tanto a Terceira Turma, quanto a Segunda Seção, nos próximos meses, proferirão novas decisões sobre o tema.
Daniel Ustárroz – Professor da PUCRS | Doutor em Direito Civil (UFRGS) | Especialista em Resolução de Conflitos e Técnicas de Mediação (UCLM) | @danielustarroz Um dos recursos mais presentes na vida dos advogados e dos Tribunais são os embargos de declaração. Trata-se de um recurso polêmico, na medida em que em diversas oportunidades o […]
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