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O chamamento atípico dos co-devedores de alimentos

data

4 de abril de 2019

categoria

CNH, Direito,

tags

A realização do direito aos alimentos é assunto que atrai a análise de distintos ramos do direito (constitucional, civil, processual, previdenciário, etc.). Contudo, ao lado de muitos temas que possuem consensos, nessa quadra histórica, existem outros que motivam intensos debates.

Com efeito, um dos consensos da comunidade acadêmica reside na íntima relação entre o direito aos alimentos e a promoção da dignidade humana. Quanto à fixação da pensão alimentícia, ensina Juliano Spagnolo que ela deve obedecer ao trinômio (necessidade de quem postula, possibilidade de quem arca e proporcionalidade no seu arbitramento): “a fixação dos alimentos aquém do mínimo necessário à sobrevivência do alimentado ofende frontalmente o principio da dignidade da pessoa humana. A fixação dos alimentos de forma exagerada, além das possibilidades econômico – financeiras do devedor, também ofende o principio da dignidade da pessoa humana, pois o alimentante não poderá prover alimentos de modo que ele próprio não os tenha para sua própria subsistência”. Defende o professor gaúcho que “toda decisão concessiva ou denegatória de alimentos deve ser fundamentada, ou ao menos orientada, pelo principio fundamental da dignidade da pessoa humana, a fim de que seja protegida e respeitada a dignidade dos sujeitos da obrigação alimentar”.

Atenta à realidade, há séculos o pensamento jurídico consagra a aplicação da cláusula rebus sic stantibus, permitindo a constante revisão da pensão alimentícia. Como pondera Fabrício Dani de Boeckel, “quando os alimentos são fixados, portanto, leva-se em consideração as circunstâncias então existentes, sendo humanamente impossível prever a probabilidade de continuação ou modificação futura das condições relevantes para o arbitramento da verba alimentar, muito embora a obrigação em análise seja essencialmente continuativa. Diante disso, é da essência da fixação dos alimentos a cláusula rebus sic stantibus, ou seja, o reconhecimento de que a pensão estabelecida é a mais adequada tendo em vista as circunstâncias verificadas no momento em que proferida a decisão, entando sujeita a revisão caso haja mudança nesse suporte fático”.

Ao lado dessas lições incorporadas ao pensamento jurídico atual, existem outras ainda polêmicas. No que interessa ao presente estudo (intervenção de terceiros), dispõe o art. 1.698, do Código Civil, que “se o parente, que deve alimentos em primeiro lugar, não estiver em condições de suportar totalmente o encargo, serão chamados a concorrer os de grau imediato; sendo várias as pessoas obrigadas a prestar alimentos, todas devem concorrer na proporção dos respectivos recursos, e, intentada ação contra uma delas, poderão as demais ser chamadas a integrar a lide”.
A natureza desse instituto é polêmica. Prova disso é a existência de acórdãos que mencionam a existência de um litisconsórcio necessário entre os avós maternos e paternos, nas ações de alimentos. Ditas decisões devem ser interpretadas com cuidado, afinal cada parente contribui com base nas suas peculiares condições, em atenção ao binômio possibilidade/necessidade. Compete, como previsto na legislação e na tradição brasileira, o encargo alimentar aos parentes mais próximos (pais e filhos), somente diante da ausência de condições desses primeiros obrigados é admissível a postulação em relação aos demais. Não há, portanto, litisconsórcio necessário, ao contrário do que sustentam decisões judiciais nesse sentido. O sistema permite (e não exige) a formação do litisconsórcio.

Em verdade, ocorre a formação de um litisconsórcio ulterior (no curso do processo), com a integração de outro parente no polo passivo, tal como no chamamento ao processo previsto no CPC. Este litisconsórcio é de natureza facultativa, pois a ausência deste parente preterido na relação processual em nada atrapalha o processo, sendo desnecessária a sua citação, quando não requerida pelas partes ou pelo MP. Contudo, a intervenção do art. 1.698 apresenta peculiaridades em relação ao tradicional “chamamento do processo”, razão pela qual adotamos a nomenclatura “chamamento atípico” apenas com o objetivo de realçar as suas distinções com o instituto previsto no CPC.

Com efeito, para melhor compreender o seu alcance, consideramos importante ultrapassar duas questões antecedentes, quais sejam: (a) quais as pessoas que, no direito brasileiro, podem ser chamadas a prestar alimentos, no âmbito das famílias e (b) quem estaria legitimidado para requerer a intervenção prevista no art. 1698.

Uma das questões delicadas reside justamente na legitimação passiva. Afinal, perante o direito brasileiro, todos os parentes podem entre si postular os alimentos que necessitem? Ou existiria alguma limitação? Se positiva, qual o seu alcance?

O caput do art. 1.694 insinua um apelo irrestrito aos alimentos: “podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação”. Contudo, logo a seguir, o próprio Código Civil impõe uma limitação nos artigos 1.696 e 1697, restringindo a legitimação passiva aos ascendentes, descendentes e irmãos.

Portanto, existe uma questão polêmica: apenas ascendentes, descendentes e irmãos podem ser chamados a prestar alimentos ou outros parentes também possuiriam dito encargo.
Em sede doutrinária, é majoritária a orientação restritiva, cuja razão de ser é explicada por Rolf Madaleno: “a prestação de alimentos na linha colateral vai somente até o segundo grau de parentesco, porque entre irmãos ainda existe no mundo dos fatos um vínculo de intimidade e afeição; embora no campo do direito sucessório a ordem de vocação hereditária permita herdar por direito próprio na linha colateral até o quarto grau (CC, art. 1.839), aduz a doutrina serem diferentes os critérios políticos e sociais a ditarem as regras dos dois institutos”.

Agrega Paulo Neto Lobo que “o parentesco para fins de alimentos é limitado ao segundo grau; para fins de impedimentos matrimoniais ou de tutela, é limitado ao terceiro grau; para fins sucessórios, é limitado ao quarto grau. Por outro lado, essa é uma característica do direito brasileiro, pois em outros países, como a França, nenhum parente colateral assume dever de alimentos. Sob o ponto de vista moral, os vínculos de reciprocidade que estão subjacentes à obrigação alimentar, são escassos ou inexistentes entre sobrinhos e tios e, sobretudo, entre primos, na realidade atual das entidades familiares. Quanto aos irmãos, a reciprocidade alimentar em relação a eles origina-se da reciprocidade inerente ao parentesco que os vincula”.

Todavia, existem autores e decisões judiciais na direção oposta. Esse é o caminho, por exemplo, trilhado por Maria Berenice Dias, a partir de sólidos fundamentos: “apesar de todos reconhecerem que a ordem de vocação hereditária estende-se até o quarto grau, de forma maciça a doutrina não admite que a responsabilidade alimentar ultrapasse o parentesco de segundo grau. Porém, não há como reconhecer direitos aos parentes e não lhes atribuir deveres. O fato de a lei explicitar o dever dos irmãos não exclui o dever alimentar dos demais parentes, aos quais é concedido direito sucessório. O silêncio não significa que estejam excluídos do dever de pensionar. O encargo segue os preceitos gerais: na falta dos parentes mais próximos são chamados os mais remotos, começando pelos ascendentes, seguidos dos descendentes. Portanto, na falta de pais, avós e irmãos, a obrigação passa aos tios e tios-avós, depois aos sobrinhos, aos sobrinhos-netos e, finalmente, aos primos (…) os graus de parentesco não devem servir só para se ficar com os bônus, sem a assunção de ônus”.

Nessa linha, tampouco deve ser olvidado que as relações jurídicas que envolvem a prestação de alimentos possuem peculiaridades. Avós, por exemplo, possuem um dever “complementar e subsidiário”, como apontado na súmula 596/STJ: “a obrigação alimentar dos avós tem natureza complementar e subsidiária, somente se configurando no caso de impossibilidade total ou parcial de seu cumprimento pelos pais”.

De seu turno, o Estatuto do Idoso, a pretexto de reforçar a tutela dessas pessoas em situação de vulnerabilidade, prescreve que o dever de prestar alimentos é solidário, a fim de permitir que os idosos os reclamem de qualquer parente. Conforme o art. 12, “a obrigação alimentar é solidária, podendo o idoso optar entre os prestadores”.

Desta forma, a amplitude da utilização do art. 1.698 irá depender dessa questão preliminar, qual seja identificar quem são os “codevedores” de alimentos, que podem ser chamados para complementar a pensão. Somente a partir dessa definição é que será possível aferir a legitimação passiva para o chamamento.

Portanto, a legitimação passiva depende da atenta análise dos fatores acima e das demais características da obrigação alimentar. A mesma complexidade é observada na definição da legitimação ativa para a postulação de incidência do art. 1.698. Também nesse ponto há dissídio na doutrina.

Dentre outros autores, Paulo Lobo considera que é um “direito do réu”: “o Código Civil, apesar da proclamada tentativa de evitar incursionar em matérias processuais, estabelece que, intentada ação contra qualquer das pessoas obrigadas a prestar alimentos, ´poderão as demais ser chamadas a integrar a lide` (art. 1698). Esse chamamento é direito do réu, que o requererá, de modo a permitir que o juiz defina as quotas que todos os obrigados potenciais deverão assumir, de acordo os respectivos recursos. A doutrina qualificou-a como nova modalidade de intervenção de terceiros (Santos, 2004, p. 227), ou uma forma especiosa de litisconsórcio passivo facultativo (Cahali, 2001, p. 150). A norma se dirige, prioritariamente, aos parentes de mesmo grau (exemplo, os avós ou os irmãos. Se há dois ou mais devedores do mesmo grau, podem ser demandados alguns, um ou todos. Pode, também, ser chamado o parente de grau diferente, quando se tratar de complementação da obrigação (exemplo, réu pai do alimentando, que não tem recursos para obrigar-se pela integralidade dos alimentos e requer o chamamento dos avós do segundo).” A posição majoritária da doutrina vai nesse sentido, de valorizar o ângulo de análise do réu.

Vai nessa linha uma decisão do Superior Tribunal de Justiça, preconizando a legitimidade ao demandado para promover o chamamento dos codevedores, como se vê do seguinte excerto: “a obrigação alimentar não tem caráter de solidariedade, no sentido que `sendo várias pessoas obrigadas a prestar alimentos todos devem concorrer na proporção dos respectivos recursos´. O demandado, no entanto, terá direito de chamar ao processo os co-responsáveis da obrigação alimentar, caso não consiga suportar sozinho o encargo, para que se defina quanto caberá a cada um contribuir de acordo com as suas possibilidades financeiras”.

Contudo, para melhor atender o interesse do alimentando, essa legitimidade deve ser complementada a fim de que o próprio credor possa, no curso da demanda, requerer a vinda de outros parentes ao processo, especialmente quando demonstrado que a pessoa inicialmente demandada não possui condições de prover integralmente a pensão. Idêntica legitimação deve ser estendida ao Ministério Público, nos feitos em que lhe compete intervir, em face de seus fins institucionais. Consideramos que o tema deva ser analisado sob o ângulo do credor dos alimentos, afinal é ele que será beneficiado pela complementação/repartição da pensão. Nesse passo, na medida em que a utilidade da medida também reverte em benefício para o autor, a sua legitimidade deve ser garantida, para o fim de se lhe autorizar, no curso do processo, invocar o art. 1.698 para obter proteção jurídica.

Essas foram as razões pelas quais a Jornada de Direito Civil editou o enunciado n. 523, com o seguinte teor: “o chamamento dos codevedores para integrar a lide, na forma do art. 1.698 do Código Civil, pode ser requerido por qualquer das partes, bem como pelo Ministério Público, quando legitimado”.

Essa solução atende ao melhor interesse do menor, tornando desnecessária a propositura de outra ação de alimentos, para se obter a devida proteção jurídica.

SOBRE O AUTOR

Doutor em Direito Civil (UFRGS). Professor da Escola de Direito (PUCRS). Instagram: @danielustarroz. Email: ustarroz@terra.com.br

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